Existe um certo cinema brasileiro hoje que brota de um parto doloroso e prazeroso de palavras, imagens, sons e ideias que reafirmam a busca de pessoas pretas por plenitude diante do caos. São, no caso específico desta mostra, filmes em primeira pessoa, diários pretos escritos por câmeras das mais diversas, algumas delas virtuais. O meio não é caro, não traduz porte ou grandes estruturas por trás e os filmes são, em quase todos os casos dessa sessão, registros individuais. Sinto que todas estas pessoas precisavam muito falar sobre suas implosões e criaram estas obras por nenhum outro motivo a não ser uma grande necessidade de desabafar. “Desabafar”, palavra que sugere expansão de energia. Sinto que o direito de falar foi retirado e agora o verbo, o texto, o excesso, se materializa sem importar tanto se as imagens estão em perfeito foco, se a luz é a melhor, se o som foi mixado da forma “correta”. São filmes que refletem a urgência de cada coração e se formalizam imperfeitos como a História do povo brasileiro.
São filmes de retorno, seja um retorno físico a um espaço de saudade, seja um retorno por revisão histórica das nossas memórias. A família, principalmente nas figuras presentes ou ausentes de pai e mãe são uma constante. Escutar o passado para entender o agora e, na contemplação do trajeto, algum lugar possível pra chamar de casa.
“Terremotos e furacões são povos massacrados”, diz a letra de
POCO (Quarentena Video feito pelo celular) de Tasha e Tracie. Esta abertura de sessão nos convida a habitar uma imagem de uma mente preta, um corpo preto, seu interior em turbulência. O fogo projetado neste sonho filmado das duas rappers vai se alastrar por toda a subjetividade dos trabalhos em sequência como uma espécie de hino à resistência. O caminho foi difícil até aqui. Da batida das gêmeas seguimos para
Círculos, de Lucas Litrento, poema vídeo ensaio rap que estende essa percepção histórica dada na abertura para uma chegada mais íntima, uma projeção da mitologia de Malcom X no sorriso tímido do irmão do diretor. Gosto de pensar uma perspectiva política a partir da ternura e tem algo nesta construção que é positivamente constrangedor e, por isso, muito bonito.
Gargaú coloca o realizador personagem Bruno Ribeiro em um percurso cinematográfico de visita a sua avó que é também todo um inventário de possibilidades para o cinema. É um filme sobre estar vivo diante da saudade. Existe ali um carinho especial ao filmar Dona Graça, sua avó, que vai reverberar também na maneira como Letícia Batista olha sua mãe no filme seguinte,
2704 Km. Somos convidados ali a ver uma distância entre duas pessoas diminuir cada vez mais, a cada imagem, tendo como conclusão um afeto pleno, manifestado pelos corpos das personagens em uma cena linda e revigorante de reencontro. E se existe uma sensação de plenitude em um abraço materno, é preciso também visitar a discórdia e o dissabor que a projeção de um amor familiar pode trazer. Chegamos em
Vander, o filme mais direto da sessão que guarda em seus curtos dois minutos um infinito de vazio seco que permanece por um longo tempo após o corte final. Na impossibilidade de finais felizes, como a obra anterior nos provocava, encerramos a sessão com a intensa subjetividade de
Edna, um auto retrato absolutamente singular e desconcertante que reforça a percepção identificada inicialmente sobre um cinema possível que surja da mais profunda sinceridade. Edna Toledo, cineasta, conversa consigo mesma sobre sua história enquanto nos mostra portais dentro do seu quarto. O que sobra disso é um dos registros mais brilhantes do cinema brasileiro recente que prova a força de podermos contar nossas próprias histórias, da nossa maneira, com todas as nossas faces.
Este apanhado de filmes chegam juntos se fortalecendo como experiência coletiva de individualidades fascinantes que hoje o cinema brasileiro tem no seu mapa. Nos pretos, todas as cores, energias pulsantes que mostram que, mesmo diante de brutais adversidades, a arte segue viva.