O som, do modo que passamos a conhecer e defender nas sociedades ocidentais, é uma força mecânica tridimensional, que necessita de um meio composto por oxigênio e outros gases para acontecer e se propagar; por isso a ciência moderna nos diz que não existe som no vácuo. O vácuo, tem sido classificado pela física mecânica como uma região onde não há presença de matéria. Dizendo sobre nossa espécie, o som é uma força inquestionavelmente relacionada com nossos corpos, o som nos move em todas as nossas possibilidades de existência: física, alma, espiritual, emocional, cognitiva. O som, é uma sensação auditiva produzida pela vibração dessa força. E a partir de minhas experiências como telespectadora e criadora de vídeos, elaborei a seguinte questão, com a qual criei a bússola curatorial desta sessão:
o que podemos sentir, quando um filme também nos convida a assisti-lo de olhos fechados?
Com essa sessão, pretendo percorrer e demonstrar as sensações e pensamentos que me ocorreram na encruzilhada formada pelos embaraços dos filmes selecionados com esse meu (auto) questionamento. Os filmes foram organizados numa certa ordem sonora, a fim de construir uma paisagem sônica que nos arremessa às experiências como desentendimento, calmaria, tesão, calafrios, medo e tristeza.
Para isso, a sessão se inicia com o embalaço sonoro da importante música “Deixa a gira girar” dos Tincoãs, que inaugura o filme
Nigiro (2020), de Assaggi Piá (BA). O trecho musical “Meu pai vem de aruanda / e a minha mãe é Iansã” se mescla com a voz e imagem de Malego Lála dizendo sobre a dimensão colonial de nossos batismos, e contextualizando a origem Bantu e onírica materna de seu novo nome, que por sua vez, quando analisado sob a lente de linguagens como kimbundo e kikongo, Malego, relaciona-se com a imagem do movimento de uma pessoa que anda pausadamente. As tradições de batismo dos povos Bakongo comparecem no relato de Kialunda, enquanto ele discorre sobre o neocolonialismo em África. E Ntu, em seu testemunho, continua a nos atentar sobre os perigos da institucionalização de nossos rebatismos, neste caso, no Brasil, demonstrando seu desinteresse com a “comprovação’ estatal de seu novo nome,que possui uma fonética que muito confirma os limites da linguagem em português, enquanto perambula por uma infinitude de possibilidades de seu pronunciamento por pessoas cuja língua primeira é o português. O filme termina com Waky Kaimbé,
o protetor das florestas, das matas, dizendo de esforços coletivos de seu povo Kaimbé em construir rituais para que novos nomes surjam aos seus parentes, possibilitando, assim, novas comunicações.
Comunicações que alterem nossos desejos de partilha, e nos possibilitam construir, viver e gozar em vínculos que não aqueles ensinados pelos desígnios modernos; violência racial, violência cisheteropatriarcal. Então, continuamos nossa sessão com
Seremos ouvidas (2020) de Larissa Nepomuceno (PR), um filme marcado pelo silêncio, sussurro, surdez e por uma multidão de vozes feministas cantando “Maria Maria”. Nessa obra, conhecemos as histórias de Celma Gomes, Gabriela Grigolom e Klicia Campos, mulheres que naquele momento decidiram denunciar uma série de violências sofridas por elas, marcadas pela falta ou precariedade da inclusão de suas necessidades femininas especificamente relacionadas às suas surdezes. Seguindo o convite que se anuncia com o título, experimentei desativar a imagem e ouvir os sons que essas mulheres produziram enquanto se comunicavam em libras. A linguagem de libras é um conjunto de gestos que não se restringe às mãos, mas expande-se por todo o corpo. E os nossos corpos são essas matérias animadas, que cotidianamente experimentam sensações intraduzíveis, ainda que elas sejam construídas numa relação com a linguagem; seja ela qual for. Em seu relato, Gabriela nos diz que não nomeava a violência vivida de
machismo, até conhecer essa palavra. Uma complexidade absurda, porque Gabriela sofria violência com seu ex-marido, que também é surdo. Gabriela nos diz sobre como o capacitismo é utilizado por policiais para justificar a soltura de homens surdos que cometem violência contra mulheres, o pensamento que paira é que esses homens surdos não sabiam o que estavam fazendo pelo fato de serem surdos. Complexo, os homens ouvintes violentando homens surdos, enquanto também os protegem com as mesmas justificativas que utilizam para justificar violências cometidas por homens ouvintes.
Após esse momento marcado por silêncios e frequências baixas, a paisagem de sons e imagens incomuns - à
brasilidade - é relocada para cenas também incomuns, mas agora, vibrantes-neon e dançantes-sensuais, conduzidas por um funk carioca muito desgraçado, abusado e perigoso criado pela BlackYva (RJ), que também é diretora de
Patfudyda (2020). Sem dúvidas,
Patfudyda é o cerne dessa sessão, é a obra que estrutura este projeto curatorial. Compreendo o funk como umas das mais poderosas sonoridades desenvolvidas por grupos negros brasileiros, suas ondas sonoras fazem vibrar nossa energia de criação numa referência sempre coletiva, e uma criteriosa amplitude que nenhum outro ritmo consegue produzir. Neste filme, contemplamos a biografia de PatFudyda ou Wallace Ferreira, que alonga seu corpo em movimentos tão certeiros e seguros quanto a sua escuridão. Ainda que o filme nos leve - por vezes, quase que inevitavelmente - para conversas sobre masculinidades e feminilidades negras, neste momento desejo preservar a completude da hibridez retinta ou o falecimento do princípio da Identidade como lente para perceber e viver tal obra. A questão é o movimento, sua chegada e sua permanência. Impossível conhecer
Patfudyda e não rebolar. E isso é a liberdade: movimentar-se.
Em seguida ao verde&rosa neom, entramos nas imagens preto&branco de
O Túmulo da Terra (2021), de Yhuri Cruz (RJ). Uma jornada heróica, paranoica, talvez comum à questão tornar-se negro, e de certo, incomum, ao contexto imagético que se insere. Sua sonoridade é marcada pela presença de pianos, sinos e outras vibrações habituais em óperas e em filmes de suspense. E suas imagens, completam a experiência sonora na medida em que nos convidam ao inevitável exercício de imaginar os tons dos gritos de espanto e de raiva e as gargalhadas de medo e gozo, sendo que todos esses sons estão mutados no filme. Logo, a comunicação gestual comparece com o cuidado exigido para a consolidação de uma comunicação, ou seja, a elaboração de uma linguagem; neste caso, Pretofágica. Importante dizer sobre a pesquisa escultórica do diretor, com peças feitas em pedra de mármore - as quais pude sentir o peso em uma visita ao seu ateliê - pois esse filme também nos diz sobre presença, permanência, desaparecimento, invocação e ausência: componentes da Subjetividade como categoria violenta, nunca alcançada ainda que desejada, a Subjetividade é um exercício de domínio em pessoas escuras. Subjetividade e Humanidade, dois destinos mentirosos, pelos quais tentamos construir uma vida. Mas nossa vida escura também não cansa de nos avisar que a racialização é apenas uma distração. Em poucas palavras, precisamos decidir pelo que enterrar e desenterrar.
A sessão finaliza-se com uma importante e corajosa nota:
Notes on Travecacceleration, dirigido por Ode (MG). Os problemas da avaliação e validação, compra, venda e intercâmbio financeiro das matérias animais - e também as próprias identidades aqui reivindicadas e defendidas - onde acontecem as travestilidades negras, ou as negritudes travestis, contudo, um filme que demonstra a criação acontecendo no além do capitalismo neoliberal ou de qualquer outro momento da economia Moderna: o transhumanismo. Em
Notes on Travecacceleration, a srt. Ode desarticula a base cisgênera que também fundamenta as clássicas epstemologias da negritude, ultilizando-se do pensamento negro radical de Aria Dean para construir sua tese de que travestilidades negras configuram o fim de uma ontologia branca-cisgênera: o ser Humano. Um filme que reúne e mistura inúmeras cenas de travestis negras - incluindo o rosto da diretora - em importantes momentos de celebração, negociação, e transmutação. A voz robótica ou extraterrestre, conta nossa história utilizando-se da língua inglesa. Não há ingenuidade em Ode, mas uma perspicácia aguçada, que não a faz esquecer da impossibilidade de traduzir a palavra ou as vidas Travestis. E novamente, a sessão anuncia meu desprendimento com orgulhos raciais e de gêneros. De fato, trata-se de construir novas histórias, e para isso é necessário entendermos como chegamos até aqui, nestes modenos: Mito Negro, Mito Travesti, Mito Mulher.
Então, pouco me importa a possibilidade moderna do vácuo, enquanto me acontece a inevitável carnificação dessas paisagens sonoras. São todas essas vibrações, que me atingiram e construíram memórias em meus músculos e em meus pelos arrepiados. Sorrisos, xingamentos, rebolados e raiva. Eu acredito em obras audiovisuais que nos possibilitam viver outros momentos vitais, Aruanda, o fundo da terra, momentos intraduzíveis, velocidades que nos arremessam ou nos puxam para a Incerteza Racial e Humana. Portanto, termino esse texto com outra pergunta:
a visualidade é ato ou uma possibilidade apenas aos olhos?