Um dos motivos da devoção da velha cinefilia pelo cinema mudo é a busca pelo olhar imediato para as coisas. Cria-se que o primeiro cinema ainda conservava o olhar para as Imagens em estado puro, como se fosse uma espécie de enciclopédia do mundo. Talvez esteja aí, uma das maiores marcas da alienação imposta pelo cinema branco europeu: o olhar idealizado para a reminiscência como modelo. Nos afastando dessa ideia, nosso processo curatorial, ao eleger esse tema “Crescer no Cinema”, se interessou por esses estágios de passagem, de transformação e instabilidades. Crescer é o ato de crescer, é um conjunto aberto que abarca todas as possibilidades de duração, até mesmo o tempo negativo, o que se perde pelo caminho.
Pele Manchada de Victor Motta abre a sessão e nos coloca uma interessante pergunta: O que precisamos deixar para trás quando se cresce como um negro? O filme nos apresenta de forma indireta uma história que trata de uma urgência de retorno à cidade onde a mãe está. Através do
Google Street View, imagens da cidade deixada pra trás. Imagens de êxodo/exílio de alma e de corpo. O cinema como um primeiro passo na direção da cura. O retorno à infância através das fotografias é cheio de instabilidades, de fissuras e de momentos de doçura.
O que a criança nos ensina e o que a criança aprende conosco? O processo incipiente de uma pedagogia construída pela criança parece ser um dos objetos centrais do filme
Dádiva de Evelyn Santos. O compartilhamento da pulsão criativa com sua sobrinha Maitê, de 3 anos, aponta para lugares bem interessantes sobre a questão do “cinema com...”. O filme retrata a cristalização do território afetivo de uma criança: atriz, narradora e motivo. Aqui fica clara a autoconsciência de Maitê sobre o filme sendo feito pela tia, que incessantemente investiga um modo de fluir como a sobrinha.
Olhos de erê de Luan Manzo, por outro lado, estabelece um novo lugar nessa direção muito bem sacado pela Kênia Freitas nas nossas reuniões de curadoria, porque ele não é só
com a criança, ou
sobre a criança: ele é um filme
da criança. É um filme sem qualquer amparo no aparato técnico ou incentivado por um adulto. No entanto, há ali um aprendizado. O filme é também um testemunho de fé, preceitos e ensinamentos transmitidos para uma criança de 6 anos. Os filmes mais preciosos da história do cinema contém essa capacidade de transmissão.
A infância interrompida em montagem com o país desencantado.
Calmaria de Catapreta é um filme de desajustados e evadidos, que lutam para lidar com um trauma pessoal em meio a um trauma geracional. A ambiguidade interna dos personagens entre seguir em paz e abrir mão da calmaria é uma bela construção que aponta para uma passagem, uma mudança de estado.
Fechando a sessão
Ser feliz no vão de Lucas H. Rossi dos Santos retorna as imagens de arquivo produzidas sobre pessoas negras. Esse retorno de forma alguma é aleatório ou um gesto maneirista. A investigação dele vai em duas direções: o negro como multidão e o negro como espetáculo. A força do filme está em como o filme se encanta pelos interstícios e microvilosidades presentes nesse olhar pré-internet. No momento atual, que narrativas e contra-narrativas têm capturado os sentidos das imagens, essa busca pelos brilhos de um outro tempo, nos revela não uma era dourada, mas um reflexo sinistro do status da nossa barbárie.