no final de março realizamos a primeira reunião coletiva dos curadores da Mostra Lâmina. a ideia inicial da direção se baseia em dois movimentos: movimento de seleção de filmes inscritos, movimento de seleção de filmes convidados a serem exibidos dentro de cada sessão. antes de receber a primeira lista dos inscritos, inicio uma conversa com Ricardo Aleixo, na busca de diálogo sobre como suas produções em videoperformance vêm se articulando com os circuitos de cinema nas últimas décadas.
entre os gestos de aproximação com o Ricardo - a definição de marcadores que poderiam me auxiliar na seleção, e a resposta do áudio acima - inicio o trabalho de seleção dos filmes inscritos e me perco do caminho curatorial trilhado inicialmente. após a apresentação de minha primeira seleção aos colegas da curadoria, me sinto fisgada por minhas defesas cinematográficas regidas por questões que não dão mais conta das multiplicidades de existência, interesses, visões e sensos de comunidade, negras. além de, talvez, a presença de resquícios de um olhar viciado para produções que facilmente estariam certificadas a ingressar para o
roll do que visualizamos como cinema negro. mas voltando à via inicial, ou ao áudio do Ricardo, olho pra trás em busca de sentido, e chego à pergunta que se faz um dos fios condutores da sessão
]in[filtr]a]ções]:
como se dá a articulação entre vídeo, performance, poesia e outras técnicas das artes visuais rumo a nuances de infiltrações poÉticas nessas produções? a partir daí, minha primeira seleção cai quase por inteiro. regresso o olhar na planilha geral, e me demoro, vendo, sentindo, e revendo alguns filmes, rumo às discussões finais com os demais curadores. outro gesto de aproximação com Ricardo se fazia necessário, assim como um brinde à nossa saúde, à vida, aos amigos e amores. já lá pelo fim da prosa, ou início de outra, Ricardo evoca o desejo de criar uma obra inédita para a sessão. assim, a até então curadoria, se expande, se [in[filtra, em forma de articulações com a equipe da mostra, e dias depois a convergência de interesses se dá na obra inédita de Ricardo Aleixo, comissionada pela mostra Lâmina. quais seriam as premissas filosóficas infiltradas em minha práxis curatorial? a quem interessa dialogar sobre? penso alto essas últimas perguntas, mas isso é prosa para outro texto.
me chama atenção como na videoperformance
des(continuida(des#1, gravada em 2004,
Ricardo Aleixo estabelece relação com a linguagem do cinema ao mesmo tempo em que escapa dela, seja pela própria descontinuidade do gesto, do ritmo, e do tempo, enquanto move o [po(e[m)a]nto[ infiltrado na pele,
uma espécie de segunda pele nas palavras do artista intermídia, poemanto. o rastro performativo, exposto no chão, gravado por alguns segundos antes do fim do vídeo, me esvai ao encontro da rodilha, criada pela artista carioca,
Mariana Maia, em
CoroAção, direção de
Juciara Áwô e Luana Arah. a performadora se coroa com uma rodilha - rosca de pano historicamente utilizada por lavadeiras, sobre a cabeça para o transporte da trouxa de roupa - confeccionado por suas próprias mãos em um gesto de recriação de tecnologias ancestrais. a relação entre a videoperformance também está presente nos grafites espalhados pelas ruas ao longo do vídeo, o que me leva a
Morde & Assopra, de
Stanley Albano. no curta, uma bixa preta é contemplada em um programa de redução de danos da burguesia, e tem o direito de passar um final de semana no casarão onde seu avô trabalhou. a performance calcada no deboche (re)cria outros imaginários quando substitui alguns quadros que decoram as paredes dos cômodos do casarão, por uma fotografia e uma pintura que retratam seu rosto adornado por molduras douradas. o casarão de elite abandonado mantém seu status do passado preservado na mobília, prataria e objetos de decoração tensionando temporalidades, assim como em
Desguardar, curta de
Ed Borges. no filme que faz parte de uma trilogia audiovisual-fotográfica Ed traça um diálogo de auto investigação e, ao mesmo tempo, cria cenas fragmentadas em atos, do seu próprio processo de criação, em diálogo com familiares a partir da fotografia. a performatividade nesse caso, possivelmente fica também a cargo da feitura do açúcar queimado derramado em fotografias e posteriormente cristalizado na água. além do diálogo entre a intimidade com a câmera, as performances, as fotografias, a poesia presentificada na escrita e nos objetos, me chama a atenção as imagens de uma instalação que dissolve, ao meu ver, qualquer tentativa de entendimento. a instalação está no filme ou o filme está na instalação? o poder de cicatrização do açúcar, bem como o ajuntamento de objetos do âmbito cotidiano me encaminha ao caldo de laranja cicatrizante das canções de
Fabinho Santinho, em
Di cumê, rezar e trabalhar. no curta, a performance se apresenta relacionada às paisagens sonoras integradas por releituras de sons cotidianos, cantos de trabalho familiares e da rua. parentes e fotografias de familiares se entrelaçam no vídeo em fragmentos de metalinguagem em diálogo com colagens sobre tijolos baianos que nos informam sobre origens operárias e tecnologias ancestrais.
o cinema, em todos os filmes aqui mencionados, não se apresenta como uma arte pronta, mas a (re)articula e, ou a adiciona camadas - sons, performances, poesia, feitura de objetos, grafite, pintura, e fotografia - rumo a uma poÉtica negra que anuncia uma gama de possibilidades de movimentos de
]in[filtr]a]ções] e
des(continuida(des nas imagens preexistententes no mundo como está dado.