Parafraseando Mbembe: Os realizadores brancos não são mais o centro gravitacional do audiovisual brasileiro. Não são mais os únicos a movimentar e dominar as dinâmicas de desejos. A hipótese defendida aqui é que o cinema branco brasileiro nunca conseguiu dar espaço de fato para a elaboração das questões relacionadas ao evento fundador desse país, que foi a escravização de negras e negros. Mas o que significa essa reconfiguração da imagem, em termos de montagem de mundo?
As circunstâncias que nos levam a abandonar qualquer esforço ontológico de reiteradas vezes explicar o que nós somos e que histórias queremos contar, nos apontam para dados imediatos de que a transformação no campo semântico da imagem não necessita que a superestrutura esteja pronta. A mudança já aconteceu e o entendimento de seus desdobramentos ainda está nos primeiros passos.
A Mostra LÂMINA vem tentar afirmar que, apesar de tudo, nós não fazemos imagens por necessidade e sim por potência. A continuidade entre o real e o possível passa por entender que o inacabamento das formas exige constante reinvenção. Em cada quebrada, a cada nova tecnologia hackeada, a cada novo espaço de influência ocupado, as pessoas negras fazem proliferar a partilha, a solidariedade e a força da construção das redes contra as tendências hegemônicas e monopolistas. De 2017 para cá, percebemos uma pequena mobilidade nos espaços de efetivo poder dentro do campo audiovisual brasileiro, onde a possibilidade de pessoas negras assumirem sem constrangimentos as instâncias de tomada de decisão, é reflexo de reivindicações básicas da luta dos movimentos negros de décadas.
Os 27 filmes selecionados e distribuídos em 5 programas foram resultado de um intenso questionamento por parte do corpo curatorial. Como fazer uma mostra audiovisual preta que estabelecesse uma continuidade entre a multiplicidade das realizações e a liberdade de ultrapassar as disciplinas específicas do cinema? Como superar a dialética sem perder a força da grupalidade? Questões que impulsionam e nos expulsam de nós mesmos para que tenhamos condições de olhar as coisas.
Por fim, saúdo todas e todos que construíram historicamente os meios para que nós estivéssemos aqui nesse momento afirmando a alegria e organizando o nosso pessimismo. Essa pátria que talvez nunca tenha chegado a existir, esse pré-Brasil que tem experimentado seu estado agônico nos nossos dias, tem uma alta conta a ser paga com o Atlântico.
André Felix
Curador